terça-feira, 5 de junho de 2012

O crescente aumento do papel da mulher no universo criminal


Alice Bianchini*
Pesquisadora: Marcela Giorgi Barroso**
Os estudos de gênero no Brasil, majoritariamente, pautam-se pela ótica da violência sofrida pela mulher. A imagem da mulher vítima e do homem agressor está fixada no imaginário comum, e é ela que resta, quase sempre, analisada por estudiosos de diversos campos de conhecimento.
Segundo Eva Blay, esta situação “é mais frequente em países de uma prevalecente cultura masculina, e menor em culturas que buscam soluções igualitárias para as diferenças de gênero”. (BLAY, 2003)
No Brasil, com seus restos ainda incidentes de cultura patriarcal, as mulheres são havidas como mais frágeis, dóceis e obedientes à lei, imagem, talvez, derivada da imediata associação ao seu papel tradicional de mãe e esposa.
A antiga criminologia vinculava as tendências criminosas a fatores biológicos. O comportamento ilícito dos agentes era associado a fatores naturais, como a maior agressividade masculina, ou a força do homem.
A Criminologia Positivista ou Tradicional funda-se no paradigma etiológico, próprio das ciências naturais, que reconhece qualidades intrínsecas em determinados indivíduos que os fazem mais propensos à prática de delitos. Sob esse contexto, a criminologia seria uma ciência explicativa que teria por objeto desvendar as causas e as condições dos comportamentos criminais e as motivações dos indivíduos criminais, entendidos como diferentes. (ESPINOZA, 2002)
Em razão disso, não se reconhecia a mulher como tendente ao crime, posto que, como dito, a sociedade a percebia, e de certa forma ainda a percebe, como frágil e submissa. Assim, seria da essência da mulher a baixa propensão à delinquência e, se criminosa fosse, quando cometidos, os motivos eram constantemente atribuídos à sexualidade precoce, à puberdade, à menopausa, ao parto, enfim, a alterações hormonais femininas. Havia ainda a associação entre crime feminino e rebeldia, o protesto contra a opressão social. (RATTON, GALVÃO & ANDRADE, 2011:3)
O senso comum permanece identificando as mulheres com o cometimento de crimes passionais ou de maternidade (infanticídio e aborto), não as vendo como possíveis agentes de crime premeditado e planejado, a fim de obter vantagens, especialmente econômicas.
Apesar da imagem de não possível delituosa ainda ser a que mais se associe às mulheres, as estatísticas apontam para um aumento significativo desse tipo de criminalidade, o que tem redundado no crescimento brutal da população carcerária feminina. O contingente de mulheres presas triplicou no período de 2000 a 2010, enquanto o masculino apenas dobrou.  (DEPEN, 2010)
O elevado aumento do índice da criminalidade de mulheres, quanto comparada à de homens, intriga e sugere investigação. E é pertinente fazê-lo, pois não há uma resposta fácil a este fenômeno, já que múltiplos e complexos são os fatores a serem levados em conta.
Inicialmente, há que se considerar que a sociedade brasileira mudou a compreensão sobre as situações lastreadas nas diferenças de gênero nas últimas décadas. Até pouco tempo, a mulher casada era considerada relativamente incapaz e dependente do marido.[1] Foi apenas em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada, que essa situação legal alterou-se, e a mulher adquiriu o status de colaboradora no lar, com a dispensa da autorização do marido para o trabalho, dentre outras conquistas.[2]Até então, era esperado que as mulheres se casassem, e poucas eram as que trabalhavam, passando de subordinada ao pai a subordinada ao marido. Segundo Maria Berenice Dias, este Código “retratava a sociedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal” (DIAS, 2011), e destinava à mulher a regência do lar, o espaço privado, por ser a responsável pela criação dos filhos, raramente lhe concedendo vez no espaço público.
A separação entre sexo e procriação advinda do surgimento da pílula contraceptiva na também década de 60 possibilitou a acentuada queda do índice de natalidade no Brasil, o qual se encontra, hoje, em 1,8 filhos por mulher. Além disso, a organização do movimento de mulheres em torno da mudança de regime político e condições sociais durante a ditadura militar e suas consequentes conquistas durante a constituinte colaboraram para uma nova cultura de sexo no Brasil.[3]
Estes, dentre outros elementos, impulsionaram as mulheres para o espaço público, empoderando-as e emancipando-as de fato, dando início a uma série de conquistas que culminaram na maior igualdade de gênero encontrada atualmente no País e garantida, constitucionalmente, no ano de 1988.
Hoje, o contingente feminino representa 52% da população economicamente ativa. Apenas 25% das mulheres são donas de casa, apesar de muitas delas ainda aterem-se aos serviços domésticos.[4] Houve, ademais, uma notável evolução e aumento da participação das mulheres em altos cargos, tanto no poder público quanto no universo da iniciativa privada. (SESC, 2010)
A mulher ampliou nas últimas décadas, portanto, sua participação no espaço social, o que pode representar uma das razões para o aumento da criminalidade feminina. Enquanto antes apenas os homens estavam além do âmbito doméstico e tinham, decorrentemente, mais oportunidades de praticar crimes, as mulheres, relegadas ainda a situações da vida privada e familiar, estavam em geral relacionadas apenas a ilícitos passionais, com baixíssimos índices de criminalidade. “A baixa criminalidade da mulher é como a saúde de uma planta de estufa, não devida às suas qualidades inatas, mas à estufa que a protege.”[5] (Bonger, 1969:64) Em verdade, no caso, a enclausurava.
Nota-se, assim, que não foram as características biológicas da mulher que a mantiveram afastadas da criminalidade, mas o modelo social em que elas se inseriam (e ainda se inserem, mesmo que em menor proporção), mantendo-as circunscritas ao âmbito doméstico.
Encontrando-se desgastado o argumento biológico de que o homem é mais propenso a praticar crimes que a mulher, cresce a percepção de que a situação prisional feminina encontra-se relacionada como um construto cultural, dentro do qual se inserem as diferenças marcadas pelo gênero.
Da mesma forma que diminuem as diferenças entre homens e mulheres na sociedade brasileira, este redimensionamento também se dá na criminalidade, ocasionando o aumento do número de mulheres no cárcere em relação a homens, da mesma forma como ocorre no trabalho ou na política, abstraídas, ainda, posições hierárquicas.
Mesmo considerando o expressivo aumento da criminalidade feminina, a mulher continua cometendo uma quantidade pequena de crimes, em se comparando aos homens. Não obstante os dados trazidos, o aumento do percentual de participação criminosa da mulher acontece em menor velocidade do que aquele de seu ingresso no espaço público.
Referências bibliográficas
BLAY, Eva Alterman. Violência contra a mulher e políticas públicas. Revista Estudos Avançados, São Paulo, v. 17,  n. 49, Dec. 2003. Disponível em: . Acesso em  28   de Outubro de  2011. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142003000300006.
BONGER, Willem Adriaan.  Criminality And Economic Conditions. Indiana University Press, 1969.
DIAS, Maria Berenice. A Mulher no Código Civil Disponível em:http://www.mariaberenice.com.br/uploads/18_-_a_mulher_no_c%F3digo_civil.pdf. Acesso em 28/10/2011
ESPINOZA, Olga. Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias,1(1): 35-59, Jan-Dez./2002
MACEDO, NATALHA. População Carcerária Feminina X Masculina (2000-2010) Disponível em:http://www.ipcluizflaviogomes.com.br/dados/5_Evolucao_crescimento_carcerario_feminino Acesso em 30.10.11
MARCUS-MENDOZA, Susan; SARGENT, Elizabeth; HO, Yu Chong Changing Perceptions of the Etiology of Crime: The Relationship Between Abuse and Female Criminality. Disponível em:http://www.doc.state.ok.us/offenders/ocjrc/94/940650b.htm Acesso em 30/10/11
RATTON José Luiz, GALVÃO Clarissa, ANDRADE Rayane. Crime E Gênero: Controvérsias Teóricas E Empíricas Sobre A Agência Feminina. Trabalho apresentado no XV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA de 26 a 29 de Julho de 2011, Curitiba – PR
SALMASSO, Rita de Cássia. Criminalidade e condição feminina: estudo de caso das mulheres criminosas e presidiárias de Marília – SP. Revista de Iniciação Científica da FFC, v.. 4, n. 3 (2004)
SESC e Fundação Perseu Abramo. Pesquisa de opinião pública: mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. Disponível em:http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/pesquisas-de-opiniao-publica/pesquisas-realizadas/pesquisa-mulheres-brasileiras-nos-es. Acesso em 12.12.2010
*Doutora em Direito Penal pela PUC/SP. Presidente do Instituto Panamericano de Política Criminal-IPAN. Coordenadora do Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais da Universidade Anhanguera-Uniderp, em convênio com a Rede LFG.
** Mestre em Direito pela USP.

[1] O Código de 1916 previa em seu art. 6º que “são incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer (…) II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.”
[2] Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251). (grifei)
“Art. 246. A mulher que exercer profissão lucrativa, distinta da do marido terá direito de praticar todos os atos inerentes ao seu exercício e a sua defesa. O produto do seu trabalho assim auferido, e os bens com êle adquiridos, constituem, salvo estipulação diversa em pacto antenupcial, bens reservados, dos quais poderá dispor livremente com observância, porém, do preceituado na parte final do art. 240 e nos ns. Il e III, do artigo 242.
[3] Sobre a luta feminista para alcançar seus direitos, sugerimos: BIANCHINI, Alice. A luta por direitos das mulheres: o feminismo no Brasil. Disponível em:http://migre.me/64WvC. Acesso em 06.11.11
[4] Casa toma 25 horas da semana da mulher em tarefas domésticas, como limpeza e cozinha e apenas 9,8 horas de homens. Estudo IBGE. FSP, 18 ago. 07, B18.
[5] No original: “Her smaller criminality is like the health of a hothouse plant; it is due not to innate the qualities, but to hothouse which protects it from harmful influences”

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